quarta-feira, 30 de setembro de 2009


As palavras se confundiam em minha mente enquanto eu desesperadamente
tentava me concentrar no Inferno de Dante. Olhei para
o relógio da sala. Já eram dez horas da noite e eu teria uma prova
na manhã seguinte sobre os oito capítulos do Inferno, que ainda não
tinha lido, e precisava escrever um resumo para minha aula de literatura e
também teria uma reunião às 6 da manhã no prédio do seminário.
Precisava me deitar logo. Eu li:

Assim que a compaixão por minha terra natal
Encheu-me o peito, recolhi as folhas espalhadas
e as devolvi àquele tronco que
agora permanecia calado.

Estava finalmente conseguindo concentrar-me o suficiente
para enfrentar aquela longa noite.

(…) Até chegarmos ao lugar
onde se separava o terceiro giro do segundo.
E onde a justiça era aplicada
da mais terrível maneira.

“Oi, Shan”, disse minha irmã de sete anos, Shallen.
Murmurei uma resposta, esperando que ela fosse embora.
Onde eu estava? Hmmm … terrível … terrível … Ahá!

(…) As coisas que ali são vistas pela primeira vez
manifestam mais claramente...

Não conseguia me concentrar. Sentia o rostinho de
boneca da Shallen observando cada gesto meu. Senti-me
como uma prisioneira submetida a uma vistoria minuciosa,
sob o olhar curioso e incômodo de minha irmãzinha.
Seus olhos verdes brilharam de entusiasmo quando
me voltei para ela.
“Na escola, a professora disse que todos os alunos
do segundo ano vão ter um dia do herói. Vamos nos
vestir como nosso herói e escrever um relatório.
Vai ser divertido. Vamos usar a fantasia até na
hora do recreio, e vamos …”
Eu sabia que, se a tagarela da minha irmãzinha não
parasse de falar, nunca acabaria de ler meus capítulos,
não terminaria meu resumo importante nem conseguiria
tirar um 10.
Eu tinha que fazer algo. Era essencial que ela fosse
embora. Se eu a ignorasse, talvez ela ficasse entediada e
fosse contar seu caso do “dia do herói” para outra pessoa
da família.
Apontei o dedo para o lugar em que estava lendo no
Inferno:

(…) Em seguida
chegamos a uma planície, e então (…)

“E vamos fazer um desenho de nosso herói e …”
Por que ela não conseguia entender que eu ficaria a noite inteira acordada fazendo a lição? Minha raiva estava
aflorando, como uma bolha prestes a estourar, quando,
então, ela parou de falar. Fiquei surpresa. Continuei com
a cabeça enterrada no livro, esperando que ela finalmente
entendesse que eu não estava interessada.
“Shan”, sussurrou ela, com sua voz doce e inocente.
Eu ainda estava concentrada nas palavras de Dante. Ela
fez uma pausa. Olhei de relance e vi que ela estava com
a cabeça baixa, ao perceber meu desinteresse. Comecei a
ter um sentimento de culpa, mas me concentrei ainda mais
nas páginas desbotadas do livro.
“Shan, quero que você seja minha heroína. Posso vestir
sua roupa de salva-vidas no meu dia do herói?”
Desviei rapidamente o olhar do livro para o cabelo
loiro que cobria o rosto cabisbaixo da minha irmãzinha.
Jamais imaginei que eu seria a heroína da Shallen — uma
heroína que nem tinha tempo para dar atenção a uma
adorável menina de 7 anos. O sentimento de culpa em
meu coração se transformou em vergonha quando percebi
como tinha sido egoísta.
Deixei de lado a caneta e o livro. Peguei minha
pequena admiradora pela mão e fui com ela até meu
quarto. Vesti nela minha camiseta desbotada pelo sol,
coroei-lhe a cabeça com minha viseira emborrachada e
pendurei-lhe no pescoço o apito corroído pela água em
que mal dava para ler o nome “Shanda”. Ela ergueu o
rosto para mim e abriu o mais lindo sorriso que eu já vira
em seu rosto. O amor dela me fez ver que minha irmãzinha
era muito mais importante para mim do que qualquer
nota dez que eu viesse a tirar.

A Liahona Agosto de 2009

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